quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

As ruas


As ruas que morrem à noite,
solitárias, meu Deus,
                      sem gemidos,
o que dizem elas
e a quem dizem?

As ruas não dormem, meninos,
                      as ruas velam.
E por que velam?
Pastoras resignadas,
assistem o sonho humano
não comunicado (e perdido)
                     dos seres
descobrindo-se uns nos outros,
perplexos e tardios.

As ruas velam silenciosas
por esses homens
                     mortos
nos passos apressados
                     da humanidade.


[do livro Quatro gavetas. Poema musicado por Márcio Portela]

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

É preciso estar bêbado



É preciso estar bêbado
pra ver beleza na vida,
é preciso estar bêbado
ou ouvir Bob Dylan.

Não me diga, professor,
que se cansou da ciência.
Não resvale, por favor,
no copo da inclemência.

Eis o copo da alegria:
põe paciência com tudo.
É preciso estar bêbado
ou contrafazer-se surdo.

Que Engels tivera Marx,
e Lewis a Tolkien – importa?
Que bonito, o copo cheio
e a solidão dessa porta.

É preciso estar bêbado
pra ver beleza na vida,
é preciso estar bêbado
ou ouvir Bob Dylan.

[inédito de Eleazar Carrias]

sábado, 27 de novembro de 2010

FRASES - Philip Yancey e a criação

"Cada criador, desde uma criança com um lápis de cor até Michelângelo, aprende que a criação envolve uma espécie de autolimitação. Sim, você produz algo que não existia antes, mas somente às custas de eliminar outras opções ao longo do caminho."

[do livro Decepcionado com Deus, Ed. Vida]

O abridor, a luz


Agora que estás (tu o sentes)
só,
se te revelam novas regras de não-destino.

Jamais terás uma adega,
mas comprarás um abridor.
Tu o usarás até que
o amarelo cristalino no copo
seja a única luz nos teus olhos.

A televisão será apenas
um elemento da decoração auto-imposta.
Revistas e roupas espalhadas
negarão que há um vaso à porta,
reclamando visitas.
E o prédio não entenderá
o que Van Morrison tem a ver
com Daft Punk.

Não serás nunca poeta,
mas amarás tuas filhas.

Agora que estás só,
pouco importa falte água:
só precisas de luz.

[poema de Eleazar Carrias musicado por Márcio Portela
e publicado na Antologia Literária Cidade vol.I]

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Tenho-me desgastado

Tenho-me desgastado mais do que poderia
dar de minhas dores, de minha fé oscilante,
de minha tímida alegria.

Os dias passam sem que eu lhes perceba a carne criativa,
tenho-me desgastado em horas tão vazias!

Não lhes pedirei socorro ou rezas, todavia
nem esse orgulho me livra de saber que me
tenho desgastado mais do que pretendia.

Tenho-me desgastado, senhores, e não lhes diria,
se este copo cheio, se este cigarro aceso
não fossem meu coração oco, não fossem minha alma fria.

[inédito de Eleazar Carrias]

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Retorno

por Alonso Rocha

Desço o barranco amarelo
os passos vagarosos prolongando a ânsia de dez
anos de espera.

Ainda está ali – velho e imóvel – o barco onde
eu brincava de marinheiro
desafiando os pássaros.
A mesma paisagem azul enchendo o fim da
Praia.
O mesmo vento abrindo velas.

Bóia na espuma o verde peixe morto
e as crianças riem das ondas destruindo castelos.
- Oh! Espelho de minha infância sem retorno!
Na pedra as águas não apagaram o nome da
Primeira Amada
- agora coberto de lodo,
mas as árvores recuaram até à beira da estrada,
e as gaivotas se multiplicaram.

Contemplativo, arranco a camisa branca
e corro feliz, os pés descalços tocando na areia molhada
e me entrego ao Mar!


[escrito na época da Academia dos Novos, Belém, anos 1940]

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

FRASES - Abraham Lincoln

"É melhor calar-se e deixar que as pessoas pensem que você é um idiota do que falar e acabar com a dúvida."

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Didática


É uma aprendizagem lenta e difícil
a solidão.
Exige uma técnica
que não se aprende
nos bares,
que não se aprende
nos cybers.
Aprende-se com o fraquejar
dos melhores amigos,
mas sobretudo se aprende
na multidão.
É uma aprendizagem lenta e difícil
a solidão.

[inédito de Eleazar Carrias, primeira versão]

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

ESCUTANDO FREUD - Bernard Charlot sobre a condição humana

[Trecho duma entrevista publicada na revista Poli, n. 09, de janeiro/fevereiro de 2010]


O sr. disse, na sua palestra no Fórum, que quando o homem começou a trabalhar, na sociedade agrícola, ele começou também a explorar o outro. Como podemos entender essa fala sem pensar na exploração como próprio de uma ‘natureza humana’?
Acho que a noção de natureza humana não faz sentido. Eu falo de condição humana, que é diferente de natureza humana. A condição humana é o fato de que o homem nasce incompleto. Como já dizia Kant no século XVIII, o homem nasce imperfeito, diferente do animal que nasce quase perfeito — no sentido etimológico de perfeito, que significa completamente feito. O homem nasce incompleto, mas nasce no mundo humano. Ele vai se constituir como humano ao apropriar-se do patrimônio construído pelas gerações anteriores. Isso me parece ser a condição humana, que significa claramente que não temos natureza humana. Porque, incompleto, é também um ser de desejo e de desejo nunca completamente satisfeito. Esse é o problema da felicidade. De certa forma é impossível o homem ser feliz porque é impossível o homem ficar quieto, já que ele nunca vai se completar. Enquanto sujeito, sempre tem desejos. Isso abre a porta à questão das relações entre meus desejos e os desejos dos outros. E isso gera conflitos, concorrência, rivalidade que funcionam no mundo humano, ao mesmo tempo que traz formas de solidariedade, porque o homem precisa de outro homem para viver — inclusive do ponto de vista afetivo. Essa é a porta para a exploração do outro e para uma série de conflitos: não por causa de uma natureza humana que seria má, mas por causa da própria condição humana.

Mas, se tem a ver com a condição humana, isso não se resolveria ou atenuaria numa sociedade socialista, por exemplo, cujas bases da estrutura econômica não estivessem firmadas sobre a exploração?
Não sei. Com 65 anos, a palavra socialista me parece cada vez mais obscura. Mas também não sou determinista porque entendo que, ao mesmo tempo, os homens têm um poder de tentar controlar o seu destino. O que acabei de definir é o encontro do desejo. Mas vamos usar de novo a psicanálise, que me parece muito esclarecedora nesses assuntos. Freud explicou que a criança nasce sob o domínio do princípio do prazer: eu quero tudo de imediato sem dar nada em troca. Só que, ao viver assim, vou perder uma coisa fundamental, que é a relação com os outros seres humanos. Portanto, devemos passar do princípio de prazer ao que a psicanálise chama de princípio de realidade. Isso significa que, se por um lado há desejo, por outro há normas para regular as relações humanas. Acho que uma sociedade socialista — com a palavra entre aspas, para deixar o espaço da sua indeterminação hoje — pode viver sempre em tensão entre um princípio de concorrência e um princípio de regulação e de solidariedade. Sabemos também que o funcionamento do princípio de concorrência como único leva à catástrofe, como a catástrofe neoliberal atual. Estou tentando dizer que nunca vamos estabilizar a situação, nunca vamos ultrapassar essa contradição fundamental: princípio de prazer e princípio de realidade; conflito e concorrência de um lado e solidariedade e necessidade de uma relação humana de outro. Acho que nunca vamos superar completamente essas contradições. Desse ponto de vista, o socialismo não vai ser o fim da história, não vai ser nunca uma sociedade ideal já alcançada, já realizada. O homem tem que viver com essas contradições. Mas pode viver com essas contradições avançando.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Fuga


Mas, se resta alguma estima,
acima de tudo promete que não voltarás.

Vai. É um risco, cada esquina,
mas, corre as ruas como se fossem iguais.

Que elas não são. Não liga.
Eu te daria meu alforje.

Mas vê. Não há nada nele que consiga
tornar teu passo mais forte.

Não contes com asas – nem digas
que não te basta o ritmo incisivo.

Não. Não te despeças. Não precisa.
Levas nos calcanhares
meu coração pervasivo.


[inédito de Eleazar Carrias]

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Teoria da ausência

A saudade que sinto de você
é uma saudade tão curta e tão concentrada
que não chega a ser saudade.
É uma saudade espremida entre um dia e outro.
É uma saudade encolhida, sufocada
numa geografia mínima,
tão mínima que não pode ser saudade
o tecido suspenso, estendido entre mim e você.


Se fosse saudade
eu até me gabaria de senti-la, porque de você.
Mas não. É antes uma presença residual. Definitiva.
Como dor que me quer abraçar
Como ausência que não se despede.
A saudade que eu sinto de você não tem razão de ser.
É uma necessidade de sofrer hoje
o que não terei jamais: sua ausência.

[do livro Quatro gavetas]

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

À morte, hoje

De nada serves, ó morte!
Estás minúscula
e já não alcanças
a extensão humana.

Onde tua glória?
Onde a pálida benevolência,
quando punhas termo
à miséria do ser?

Entre paredes brancas
e nos campos da guerra
e nas ruas cotidianas,
tu corres,
assustada com teu ofício.

Não dás conta:
toda a vida supura.

[do livro Quatro gavetas]

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Oração


               Um amigo
               uma namorada
               um cão.
Dá-me, Senhor, estas três coisas que nunca tive.

[do livro Quatro gavetas]

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Um poeta transamazônico

por Amarílis Tupiassu

Por que cargas d’água tanta gente se pensa e se jura poeta. 'Muita audácia!', opina minha amiga Juruema Bastos. Quem, de fato, é poeta? Que trato talha esse ser? Possível sê-lo só por mero querer? Quem, quê, o engendra? É o xis do problema. Penso em situações simples que talvez ajudem a responder. Poesia é caso de ver e dizer? Pode ser mas... Vejamos. Um menino de quatro anos. Digo o nome para não me vir alguém lançar em rosto que invento fábulas, eu que amo fábulas, mas amo mais, até por precisão, falar da vida vivida. Foi Igor Schneider aos + ou - cinco anos e surpreendeu a amiga Paula, a mãe:
- Mãe, que nome vais me dar quando eu crescer?

- Igor, a gente nasce, ganha um nome e não troca mais.

-Troca, sim, Bia não vai ser Ana Beatriz, Tatá não vai ser Natasha, Joãozinho não vai ser João? Pois é, e eu?

Avivente você a cena, pense a sequência com Igor triste por não ter outro nome ao crescer. De fato, Igorzinho não é fácil de vingar por pronúncia difícil.

Criança tem mesmo modo incomum de ver e dizer. De outra feita, foi João Vítor, pessoa verídica, filho de Fabrízio. O pai chega e chama-o João. Ele reclama. 'Não me chama só João. Quero meu nome inteiro.' Insiste e confunde o pai: 'Já pensaste se chamasse meu amigo Artur por A, o Vítor por Vi e a ti por Fá?'

Igor e João Vítor perceberam a linguagem por ângulo novo. Eles provam que as crianças veem e dizem a vida além, muito além daquela serra. Os poetas também. Têm uma espécie de vidência, sexto sentido, iluminam a existência com sóis e luares inusitados. Falam o mesmo dos lunáticos parece que também voltados a ver/dizer o visto diferente dos mortais comuns, que muitos destes só vivem a correr enceguecidos atrás de nada, até que, como canta o nosso grande Billy Blanco, 'a bruxa que é cega esbarra na gente e a vida estanca.'

Pensava nisso, em nossa condição falante, fora de quê, somos nada. Tinha ido ao Centur, no 19/11/09 - lançamento dos livros vencedores do Prêmio Dalcídio Jurandir-2008. Revirava os livros premiados, dei de súpeto com um poeta e tanto. Fiquei boba, não imaginava. O relógio varava a madrugada e eu esperta, atordoada com beleza de 'Quatro Gavetas', de Eleazar Venâncio Carrias, a quem só vi na premiação, magrinho, tímido, nascido à margem da Transamazônica, num longe tão longe e vago da Amazônia, que nem tem nome o lugar. Eleazar passou 20 anos em Breu Branco e hoje vive em Tucuruí. Seu livro tem timbre de qualidade: o prefácio 'Arquivo Poético', do prof. Benedito Nunes. Seus poemas são ímãs, magnetizações, nada de 'ramirrámi', nem chavão, verso gasto, bobagem, autoconsagração, factoide poético. Cada página, um achado, vida bebida, sentida, engolida, doce ou rascante, ruminação incomum de palavras, fina poesia, dor e afago, poesia dissolvida em letra que abala, alegra o leitor, poemas que recriam a língua e levam a pensar no ser que se é, carícia, brandura, raiva. Atordoa a concisão de Eleazar sugando a substância de ser em seu verbo concedido ao belo-simples-grato, sem tiques e vícios verbais.

Navegava o sorriso dos versos e me finda esta página. Eleazar... não sei de seus matos nem como se forjou tecelão de poesia. Ótima poesia é aquela que a gente lê, relê e ela não se esgota. 'Quatro Gavetas', dentro de cada uma, sedas finíssimas, flores raras, lágrimas furtivas, perdas, achados, lavrados. Ótima poesia. Louvo o poeta transamazônico. Não sabia o poeta que é.

Fonte: Caderno Mulher, Jornal O Liberal, edição de 29/11/2009.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Arquivo poético - prefácio do livro Quatro Gavetas

por Benedito Nunes


Descobre a poesia aquele que a descobre no exercício da linguagem comum, como o faz Eleazar Venancio Carrias neste Quatro Gavetas: as interrogações, os contrastes, as contradições que a existência humana pronuncia.

Entre essas contradições, destaca-se a tensão entre ausência e presença. O sorriso da pessoa amada, por exemplo, é uma ausência sentida, imaginada; a ausência se torna presença pelo ato de amor que a preenche:

“Estranha, a tua presença seca
– no ar.
Por instinto minhas mãos tocam teu sorriso doce
– ausente.”

O amor é um desejo vago, “coisa feito bruma”. As paixões são fortes, afetam “artérias e nervos”, elas explodem sem que seu objeto se materialize. A saudade do objeto amado é “uma presença residual”. Por isso, “um vazio imenso” se infiltra no próprio poema, que se substitui ao ventinho fresco desejado. Em toda a obra, ausência e vazio se repetem.

“Não há esperança
pois não há o tempo.”

Daí o descontentamento que perpassa nesses versos de um lirismo desiludido, juntando tantas “coisas esquecidas”, Deus e orações e amigos, e concebendo o Espírito Divino como quem sofre e geme nos versos do poema. Não se sabe se Deus foi perdido ou se está esquecido.

Tudo é dúvida numa poesia em formação, como a de Eleazar Carrias – poesia à busca de seu caminho, de seus ritmos, de suas formas, mas já abrangendo, em seu desencanto, o choque das contradições e da insolúvel relação entre presença e ausência.

A busca poética jamais finaliza. A de Eleazar Carrias há de levá-lo a preencher as Quatro Gavetas desse arquivo poético com a matéria adequada a cada espécie de madeira – acapu, angelim, miriti, e cedro – que o constitui. Assim, já no primeiro poema, mesmo a visão da realidade que se guarda sob a mais dura madeira implica em silêncio, nudez e abandono.

A visão

Todas as noites
me levanto pela madrugada,
quando ainda sonham os galos,
e ouço o silêncio me chamando lá fora.

Pela fresta da janela
vejo a rua despida
e o frio a lamber-lhe as curvas.

Todas as noites se repete o convite.

E no dia seguinte
me culpo por abandonar a noite
sozinha
lá fora.