sexta-feira, 20 de agosto de 2010

À morte, hoje

De nada serves, ó morte!
Estás minúscula
e já não alcanças
a extensão humana.

Onde tua glória?
Onde a pálida benevolência,
quando punhas termo
à miséria do ser?

Entre paredes brancas
e nos campos da guerra
e nas ruas cotidianas,
tu corres,
assustada com teu ofício.

Não dás conta:
toda a vida supura.

[do livro Quatro gavetas]

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Oração


               Um amigo
               uma namorada
               um cão.
Dá-me, Senhor, estas três coisas que nunca tive.

[do livro Quatro gavetas]

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Um poeta transamazônico

por Amarílis Tupiassu

Por que cargas d’água tanta gente se pensa e se jura poeta. 'Muita audácia!', opina minha amiga Juruema Bastos. Quem, de fato, é poeta? Que trato talha esse ser? Possível sê-lo só por mero querer? Quem, quê, o engendra? É o xis do problema. Penso em situações simples que talvez ajudem a responder. Poesia é caso de ver e dizer? Pode ser mas... Vejamos. Um menino de quatro anos. Digo o nome para não me vir alguém lançar em rosto que invento fábulas, eu que amo fábulas, mas amo mais, até por precisão, falar da vida vivida. Foi Igor Schneider aos + ou - cinco anos e surpreendeu a amiga Paula, a mãe:
- Mãe, que nome vais me dar quando eu crescer?

- Igor, a gente nasce, ganha um nome e não troca mais.

-Troca, sim, Bia não vai ser Ana Beatriz, Tatá não vai ser Natasha, Joãozinho não vai ser João? Pois é, e eu?

Avivente você a cena, pense a sequência com Igor triste por não ter outro nome ao crescer. De fato, Igorzinho não é fácil de vingar por pronúncia difícil.

Criança tem mesmo modo incomum de ver e dizer. De outra feita, foi João Vítor, pessoa verídica, filho de Fabrízio. O pai chega e chama-o João. Ele reclama. 'Não me chama só João. Quero meu nome inteiro.' Insiste e confunde o pai: 'Já pensaste se chamasse meu amigo Artur por A, o Vítor por Vi e a ti por Fá?'

Igor e João Vítor perceberam a linguagem por ângulo novo. Eles provam que as crianças veem e dizem a vida além, muito além daquela serra. Os poetas também. Têm uma espécie de vidência, sexto sentido, iluminam a existência com sóis e luares inusitados. Falam o mesmo dos lunáticos parece que também voltados a ver/dizer o visto diferente dos mortais comuns, que muitos destes só vivem a correr enceguecidos atrás de nada, até que, como canta o nosso grande Billy Blanco, 'a bruxa que é cega esbarra na gente e a vida estanca.'

Pensava nisso, em nossa condição falante, fora de quê, somos nada. Tinha ido ao Centur, no 19/11/09 - lançamento dos livros vencedores do Prêmio Dalcídio Jurandir-2008. Revirava os livros premiados, dei de súpeto com um poeta e tanto. Fiquei boba, não imaginava. O relógio varava a madrugada e eu esperta, atordoada com beleza de 'Quatro Gavetas', de Eleazar Venâncio Carrias, a quem só vi na premiação, magrinho, tímido, nascido à margem da Transamazônica, num longe tão longe e vago da Amazônia, que nem tem nome o lugar. Eleazar passou 20 anos em Breu Branco e hoje vive em Tucuruí. Seu livro tem timbre de qualidade: o prefácio 'Arquivo Poético', do prof. Benedito Nunes. Seus poemas são ímãs, magnetizações, nada de 'ramirrámi', nem chavão, verso gasto, bobagem, autoconsagração, factoide poético. Cada página, um achado, vida bebida, sentida, engolida, doce ou rascante, ruminação incomum de palavras, fina poesia, dor e afago, poesia dissolvida em letra que abala, alegra o leitor, poemas que recriam a língua e levam a pensar no ser que se é, carícia, brandura, raiva. Atordoa a concisão de Eleazar sugando a substância de ser em seu verbo concedido ao belo-simples-grato, sem tiques e vícios verbais.

Navegava o sorriso dos versos e me finda esta página. Eleazar... não sei de seus matos nem como se forjou tecelão de poesia. Ótima poesia é aquela que a gente lê, relê e ela não se esgota. 'Quatro Gavetas', dentro de cada uma, sedas finíssimas, flores raras, lágrimas furtivas, perdas, achados, lavrados. Ótima poesia. Louvo o poeta transamazônico. Não sabia o poeta que é.

Fonte: Caderno Mulher, Jornal O Liberal, edição de 29/11/2009.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Arquivo poético - prefácio do livro Quatro Gavetas

por Benedito Nunes


Descobre a poesia aquele que a descobre no exercício da linguagem comum, como o faz Eleazar Venancio Carrias neste Quatro Gavetas: as interrogações, os contrastes, as contradições que a existência humana pronuncia.

Entre essas contradições, destaca-se a tensão entre ausência e presença. O sorriso da pessoa amada, por exemplo, é uma ausência sentida, imaginada; a ausência se torna presença pelo ato de amor que a preenche:

“Estranha, a tua presença seca
– no ar.
Por instinto minhas mãos tocam teu sorriso doce
– ausente.”

O amor é um desejo vago, “coisa feito bruma”. As paixões são fortes, afetam “artérias e nervos”, elas explodem sem que seu objeto se materialize. A saudade do objeto amado é “uma presença residual”. Por isso, “um vazio imenso” se infiltra no próprio poema, que se substitui ao ventinho fresco desejado. Em toda a obra, ausência e vazio se repetem.

“Não há esperança
pois não há o tempo.”

Daí o descontentamento que perpassa nesses versos de um lirismo desiludido, juntando tantas “coisas esquecidas”, Deus e orações e amigos, e concebendo o Espírito Divino como quem sofre e geme nos versos do poema. Não se sabe se Deus foi perdido ou se está esquecido.

Tudo é dúvida numa poesia em formação, como a de Eleazar Carrias – poesia à busca de seu caminho, de seus ritmos, de suas formas, mas já abrangendo, em seu desencanto, o choque das contradições e da insolúvel relação entre presença e ausência.

A busca poética jamais finaliza. A de Eleazar Carrias há de levá-lo a preencher as Quatro Gavetas desse arquivo poético com a matéria adequada a cada espécie de madeira – acapu, angelim, miriti, e cedro – que o constitui. Assim, já no primeiro poema, mesmo a visão da realidade que se guarda sob a mais dura madeira implica em silêncio, nudez e abandono.

A visão

Todas as noites
me levanto pela madrugada,
quando ainda sonham os galos,
e ouço o silêncio me chamando lá fora.

Pela fresta da janela
vejo a rua despida
e o frio a lamber-lhe as curvas.

Todas as noites se repete o convite.

E no dia seguinte
me culpo por abandonar a noite
sozinha
lá fora.