por Amarílis Tupiassu
Por que cargas d’água tanta gente se pensa e se jura poeta. 'Muita audácia!', opina minha amiga Juruema Bastos. Quem, de fato, é poeta? Que trato talha esse ser? Possível sê-lo só por mero querer? Quem, quê, o engendra? É o xis do problema. Penso em situações simples que talvez ajudem a responder. Poesia é caso de ver e dizer? Pode ser mas... Vejamos. Um menino de quatro anos. Digo o nome para não me vir alguém lançar em rosto que invento fábulas, eu que amo fábulas, mas amo mais, até por precisão, falar da vida vivida. Foi Igor Schneider aos + ou - cinco anos e surpreendeu a amiga Paula, a mãe:
- Mãe, que nome vais me dar quando eu crescer?
- Igor, a gente nasce, ganha um nome e não troca mais.
-Troca, sim, Bia não vai ser Ana Beatriz, Tatá não vai ser Natasha, Joãozinho não vai ser João? Pois é, e eu?
Avivente você a cena, pense a sequência com Igor triste por não ter outro nome ao crescer. De fato, Igorzinho não é fácil de vingar por pronúncia difícil.
Criança tem mesmo modo incomum de ver e dizer. De outra feita, foi João Vítor, pessoa verídica, filho de Fabrízio. O pai chega e chama-o João. Ele reclama. 'Não me chama só João. Quero meu nome inteiro.' Insiste e confunde o pai: 'Já pensaste se chamasse meu amigo Artur por A, o Vítor por Vi e a ti por Fá?'
Igor e João Vítor perceberam a linguagem por ângulo novo. Eles provam que as crianças veem e dizem a vida além, muito além daquela serra. Os poetas também. Têm uma espécie de vidência, sexto sentido, iluminam a existência com sóis e luares inusitados. Falam o mesmo dos lunáticos parece que também voltados a ver/dizer o visto diferente dos mortais comuns, que muitos destes só vivem a correr enceguecidos atrás de nada, até que, como canta o nosso grande Billy Blanco, 'a bruxa que é cega esbarra na gente e a vida estanca.'
Pensava nisso, em nossa condição falante, fora de quê, somos nada. Tinha ido ao Centur, no 19/11/09 - lançamento dos livros vencedores do Prêmio Dalcídio Jurandir-2008. Revirava os livros premiados, dei de súpeto com um poeta e tanto. Fiquei boba, não imaginava. O relógio varava a madrugada e eu esperta, atordoada com beleza de 'Quatro Gavetas', de Eleazar Venâncio Carrias, a quem só vi na premiação, magrinho, tímido, nascido à margem da Transamazônica, num longe tão longe e vago da Amazônia, que nem tem nome o lugar. Eleazar passou 20 anos em Breu Branco e hoje vive em Tucuruí. Seu livro tem timbre de qualidade: o prefácio 'Arquivo Poético', do prof. Benedito Nunes. Seus poemas são ímãs, magnetizações, nada de 'ramirrámi', nem chavão, verso gasto, bobagem, autoconsagração, factoide poético. Cada página, um achado, vida bebida, sentida, engolida, doce ou rascante, ruminação incomum de palavras, fina poesia, dor e afago, poesia dissolvida em letra que abala, alegra o leitor, poemas que recriam a língua e levam a pensar no ser que se é, carícia, brandura, raiva. Atordoa a concisão de Eleazar sugando a substância de ser em seu verbo concedido ao belo-simples-grato, sem tiques e vícios verbais.
Navegava o sorriso dos versos e me finda esta página. Eleazar... não sei de seus matos nem como se forjou tecelão de poesia. Ótima poesia é aquela que a gente lê, relê e ela não se esgota. 'Quatro Gavetas', dentro de cada uma, sedas finíssimas, flores raras, lágrimas furtivas, perdas, achados, lavrados. Ótima poesia. Louvo o poeta transamazônico. Não sabia o poeta que é.
Fonte: Caderno Mulher, Jornal
O Liberal, edição de 29/11/2009.