[Trecho duma entrevista publicada na revista Poli, n. 09, de janeiro/fevereiro de 2010]
O sr. disse, na sua palestra no Fórum, que quando o homem começou a trabalhar, na sociedade agrícola, ele começou também a explorar o outro. Como podemos entender essa fala sem pensar na exploração como próprio de uma ‘natureza humana’?
Acho que a noção de natureza humana não faz sentido. Eu falo de condição humana, que é diferente de natureza humana. A condição humana é o fato de que o homem nasce incompleto. Como já dizia Kant no século XVIII, o homem nasce imperfeito, diferente do animal que nasce quase perfeito — no sentido etimológico de perfeito, que significa completamente feito. O homem nasce incompleto, mas nasce no mundo humano. Ele vai se constituir como humano ao apropriar-se do patrimônio construído pelas gerações anteriores. Isso me parece ser a condição humana, que significa claramente que não temos natureza humana. Porque, incompleto, é também um ser de desejo e de desejo nunca completamente satisfeito. Esse é o problema da felicidade. De certa forma é impossível o homem ser feliz porque é impossível o homem ficar quieto, já que ele nunca vai se completar. Enquanto sujeito, sempre tem desejos. Isso abre a porta à questão das relações entre meus desejos e os desejos dos outros. E isso gera conflitos, concorrência, rivalidade que funcionam no mundo humano, ao mesmo tempo que traz formas de solidariedade, porque o homem precisa de outro homem para viver — inclusive do ponto de vista afetivo. Essa é a porta para a exploração do outro e para uma série de conflitos: não por causa de uma natureza humana que seria má, mas por causa da própria condição humana.
Mas, se tem a ver com a condição humana, isso não se resolveria ou atenuaria numa sociedade socialista, por exemplo, cujas bases da estrutura econômica não estivessem firmadas sobre a exploração?
Não sei. Com 65 anos, a palavra socialista me parece cada vez mais obscura. Mas também não sou determinista porque entendo que, ao mesmo tempo, os homens têm um poder de tentar controlar o seu destino. O que acabei de definir é o encontro do desejo. Mas vamos usar de novo a psicanálise, que me parece muito esclarecedora nesses assuntos. Freud explicou que a criança nasce sob o domínio do princípio do prazer: eu quero tudo de imediato sem dar nada em troca. Só que, ao viver assim, vou perder uma coisa fundamental, que é a relação com os outros seres humanos. Portanto, devemos passar do princípio de prazer ao que a psicanálise chama de princípio de realidade. Isso significa que, se por um lado há desejo, por outro há normas para regular as relações humanas. Acho que uma sociedade socialista — com a palavra entre aspas, para deixar o espaço da sua indeterminação hoje — pode viver sempre em tensão entre um princípio de concorrência e um princípio de regulação e de solidariedade. Sabemos também que o funcionamento do princípio de concorrência como único leva à catástrofe, como a catástrofe neoliberal atual. Estou tentando dizer que nunca vamos estabilizar a situação, nunca vamos ultrapassar essa contradição fundamental: princípio de prazer e princípio de realidade; conflito e concorrência de um lado e solidariedade e necessidade de uma relação humana de outro. Acho que nunca vamos superar completamente essas contradições. Desse ponto de vista, o socialismo não vai ser o fim da história, não vai ser nunca uma sociedade ideal já alcançada, já realizada. O homem tem que viver com essas contradições. Mas pode viver com essas contradições avançando.